quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Capítulo 21 - Visitas inesperadas


Capítulo 21 – Visitas inesperadas.

Com passos rápidos Uranus chegou à enfermaria localizada no térreo, no fim do bloco do prédio de Artes. Um dos lugares mais sossegados no Mugen Gakuen. A corredora conhecia bem o caminho.

Vendo a plaquinha de identificação na porta, a jovem se aproximou e espiou a pequena janela de vidro. Girou a maçaneta e entrou.

Era uma das poucas salas no colégio a não possuir portas deslizantes. Decidiu-se que a combinação de adolescentes curiosos, remédios e portas corrediças não era muito sábia, então se deu lugar à chave e maçaneta.
Paredes brancas, boa iluminação, persianas azul-claro combinando com o sofá de curvin azul-escuro e almofadas brancas, era mais espaçosa que as enfermarias das outras escolas. Ela ainda comportava uma cômoda para lençóis, fronhas e toalhinhas, prateleiras de madeira com rolos de gazes, caixas de comprimidos, esparadrapos e algumas seringas. Havia também três camas estreitas divididas por biombos, ocupadas geralmente depois de uma aula de Educação Física mal-humorada de Izumida ou um treino de beisebol pré-campeonato.

Haruka fechou a porta atrás de si e viu a conhecida silhueta sentada em um banquinho perto da janela. De saia e jaleco brancos, cruzara as pernas enquanto saboreava um chá gelado em latinha. A corredora deu um meio sorriso e pôde esquecer por alguns segundos a dor.

Ao ouvir o clique da porta, a enfermeira virou-se.

- Ora ora, olha quem chegou... – disse a mulher com um sorriso olhando de esguelha para a loira. – O que vai ser hoje? Febre? Resfriado? Dor nas costas? Dor de cabeça?

- Falando assim, parece até que inventei tudo isso. – Haruka sentou-se na beira de umas das camas e observou a mulher dar o último gole para jogar a latinha no lixo.

- É, parece.

Uranus deu uma risadinha antes de o estômago alertar que ainda estava incomodado. A mulher observou a adolescente levar uma das mãos à barriga e constatou um problema real.

- O que está sentindo, Tenoh?

O tom da voz e a menção do sobrenome revelaram a preocupação de Yuko Kimura.

- M-Meu estômago dói...

A mulher levantou, pegou o banquinho e sentou próxima à corredora.

- Deite e levante um pouco a blusa por favor, Tenoh. – falou calmamente a enfermeira, posicionando uma das mãos no ventre da garota e logo depois pressionando um ponto. – Dói aqui?

- Não...

- O que comeu no intervalo?

Yuko viu o rubor da jovem e baixou novamente a blusa. Soube que era uma garota na primeira visita dela na enfermaria. Na época, Haruka chegou tossindo e praguejando, reclamando do último treino mais cedo com um tal de Yoshiro. Comentou sobre a poeira da pista de corrida e como ele a fez correr sem descanso. Ao levantar a parte da cima do uniforme para a profissional auscultar com o estetoscópio, acabou mostrando o sutiã-sport branco e lançou um olhar questionador. A mulher sorriu tranquilizando-a.

“Não se preocupe, não vou falar nada. Para ninguém.” Yuko cumprira sua palavra.

Então ganhou a confiança da adolescente.

- No intervalo nada, só que mais cedo comi peixe e uma omelete... – respondeu a loira.

- Parece que foi indigestão. – disse Yuko oferecendo um comprimido. Haruka aceitou com uma careta. – Devia estar estragado ou muito oleoso. – completou Kimura.

- Foi omelete. Estava bem queimado, parecia um pastel de carvão!

- Ora, aprenda a cozinhar, Haruka.

- Não fui eu quem cozinhou.

- Quem foi?

- Alguém que...ainda está aprendendo. Não quer cozinhar pra mim?

- Tome seu comprimido.

- Sem água?

- Economize a saliva que usa para tagarelar e tudo vai dar certo.

A jovem enviesou o sorriso. Yuko Kimura não facilitava e isso só tornava a brincadeira mais interessante...

[...]

Michiru se aproximava do refeitório, quando uma aluna tocou-lhe o ombro. Eri Nakamura cumprimentou-a rapidamente.

- Kaioh-san, o diretor quer vê-la. Acabei de voltar da sala e ele nos deu permissão para fazer os panfletos da peça! Não é ótimo?

- A-Ah, sim... – respondeu a outra sem muito entusiasmo – Sabe dizer o que ele queria?

- Não, ele só pediu para chamá-la.

A violinista agradeceu e atravessou o corredor sem saber o que esperar da convocação. Desde que entrara no Mugen só visitara a diretoria uma vez: no dia em que se matriculou. O homem fizera questão de conhecê-la e apertar-lhe a mão, gesto que a jovem atribuiu ao seu sobrenome.

“É uma honra recebê-la em nosso colégio, senhorita Kaioh. Seu pai e eu conversamos por telefone e lhe assegurei que nosso ensino é o melhor, além de contarmos com alunos excepcionais, de famílias...”

“Ugh.”

A garota irritou-se só de lembrar do diálogo. Não, definitivamente não gostava do diretor.

Neptune deu duas batidas rápidas na porta e entrou na sala. Mantinha a atmosfera pretensiosa, como recordava. Embora a disposição dos objetos tivesse mudado.

À esquerda viam-se dois sofás pretos revestidos de couro e a mesinha de centro de mesma cor, juntamente com a estante de livros que a garota nunca se deu o trabalho de especular o conteúdo. À direita uma porta que dava para o que Michiru sabia ser um banheiro. À frente via-se o diretor, Nobuaki Hiyama, de terno preto e bem acomodado na poltrona cinza de couro, de encosto quase um palmo acima da cabeça, o que o tornava uma figura imponente...Até que se levantasse e mostrasse seu 1,57m de altura e pezinhos que Haruka podia jurar balançarem escondidos por trás da mesa.

Nobuaki assumira o cargo provisoriamente. Contudo, circunstâncias mal explicadas o fizeram diretor por tempo indeterminado. Boatos voavam pelo Mugen, sobre o verdadeiro dono do colégio, o cientista Souichi Tomoe. Maldosos ou esdrúxulos, as especulações pelos corredores pareciam não cessar.

“Ouvi dizer que o antigo diretor perdeu a esposa em um dos experimentos!”

“O tal Tomoe é louco, vive recluso numa mansão e mantém a filha presa, sabia?”

“Não, a filha dele é pequena e vive doente, acho que é alguma coisa no coração...”

“Soube que Hiyama-san se aproveitou da loucura de Tomoe-san para pegar o cargo...”

A violinista conhecia a maioria das versões da história do tal cientista e tinha um pressentimento ruim sobre elas. Porém, no momento ela e Haruka não dispunham de tempo para averiguar a veracidade de boatos.

Estreitando os olhos como se analisasse uma tela, Michiru estranhou a nova decoração do espaço. Desconfiou que Nobuaki tivesse convocado vários designers e arrancado uma página de cada um dos projetos, fazendo do local um desconfortável espetáculo exibicionista. Em uma olhada rápida o ambiente poderia impressionar, contudo, alguém mais artisticamente perceptivo torceria o nariz. A jovem não pôde conter um sorriso, ainda que discreto.

“O dinheiro nem sempre pode comprar bom gosto...” – pensou.

O sinal avisando o término do intervalo tocara no exato momento em que Nobuaki Hiyama convidou a violinista para sentar-se na cadeira em frente a sua mesa. A garota concordou com a cabeça.

- Não se preocupe com o sinal, Kaioh-san. – disse o homem impostando estranhamente a voz enquanto tirava o óculos e limpava-o com um lenço de papel de uma caixinha em cima da mesa. – Falarei com o professor da aula atual para não lhe dar falta. – continuou. Estava sorrindo e a garota achou de bom tom retribuir.

- Obrigada, Hiyama-san.

[...]

Na enfermaria, Haruka esperava sentada em uma das camas o comprimido fazer efeito quando ouviu o sinal tocar. Fez menção de levantar, contudo a enfermeira interrompeu.

- Acho melhor ficar quietinha aí, até passar a dor. – disse Yuko calmamente.

- Ah, não é pela minha companhia que quer me manter aqui? – perguntou a estudante com falso ar ofendido.

- Ah, claro... – respondeu Kimura esboçando um sorriso – Porque sou paga para bancar a babá de vocês, adolescentes.

- Não sentiu minha falta? Nem um pouquinho? – disse a corredora aproximando o dedo indicador do polegar, em um sinal de mínimo.

- Talvez assim... – a mulher estendeu a mão e encurtou ainda mais o espaço dos dedos da jovem. Haruka deu uma risadinha.

- Nossa, que cruel, Yuko-chan...

Yuko-chan”. A enfermeira suspirou. Havia desistido de corrigir a velocista e impor o “Kimura-san” pelo qual os outros estudantes a chamavam. Referia-se constantemente à garota pelo sobrenome, indicando que desejava o mesmo tratamento, porém Haruka a ignorava. E exibia um sorriso enquanto fazia isso.

Yuko Kimura chegou ao Mugen logo após Sayoko Arai se aposentar. A direção notara que os adolescentes se aproveitavam da complacência da antiga enfermeira, sempre os tratando de estranhíssimos sintomas e doenças, como dores no dedo mindinho ou tornozelos que torciam três vezes por semana.

Quando Kimura, na época com vinte e seis anos assumiu o cargo, solucionou o problema das constantes visitas mostrando uma seringa com uma enorme agulha. As bizarras doenças diminuíram bastante. Milagre.

Os olhares e atenções, por sua vez, continuavam os mesmos ao longo dos anos. Aos trinta e um anos, Yuko era uma mulher atraente. Cabelos acobreados presos em uma longa trança, pernas torneadas e um sinalzinho próximo à boca, faziam de Kimura alguém muito popular, sobretudo em um colégio povoado por jovens com hormônios pululantes.

[...]

Michiru acomodou-se na cadeira e esperou o homem falar. Parecia um tanto incomodado. Passou a mão pela careca e finalmente disse:

- Bem, chamei-a aqui para resolver umas...pendências.

- Pendências? De que tipo?

O homem olhou rapidamente para a esquerda e parou ao ouvir a porta do banheiro abrir. Michiru seguiu o olhar do diretor e franziu o cenho. “Por quê?” pensou.

- O que está fazendo aqui? – disse a violinista em um tom áspero que surpreendeu Nobuaki, mas nem tanto a pessoa que estava agora na sala...

(continua)

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Capítulo 20 – Dó Ré Mi Improvisado

Capítulo 20 – Dó Ré Mi Improvisado.

“A frase estava melhor na minha cabeça. Quer dizer, bem melhor. Narumi-sensei me olhava com total descrença, imaginando provavelmente se eu teria batido com a cabeça em um piano. Bem, eu não poderia culpá-la. A mídia vendia minha imagem como prodígio das maratonas e corridas. Achavam que a única Ré conhecida por mim era da marcha de um carro. Dali, apenas Michiru sabia da minha verdadeira paixão por música clássica...”

Narumi pôs a mão no queixo e arqueou uma sobrancelha, imaginando se a história da loira era pura brincadeira ou muita pretensão.

- Estou vendo que não acredita em mim. – disse a corredora com impaciência. – Posso provar se quiser, é só irmos à sala de música e...

A mulher levantou a mão parando a Sailor e deu um sorriso rápido. Parecia ligeiramente empolgada com a revelação.

- Não tenho tempo para isso agora, Tenoh. Mas peça a Nakamura-san um minuto para acompanhá-lo à sala de música, ela verá como aproveitar seu...talento.

A velocista sorriu e curvou-se brevemente agradecendo Narumi, que entrou na sala de aula novamente. Outro aluno a chamara.

Compenetradas na atuação, Michiru e Mitsune não desviaram os olhos uma da outra e continuaram seu diálogo sob olhar atento de Eri, que se juntara à roda dos intérpretes. Takeo espiou por cima do roteiro e viu Haruka se aproximar devagar, discretamente.

- Eri-san, posso falar com você um instante? – a loira sussurrou por trás da menina, que se virou.

- C-Claro... – respondera Eri acanhada. Haruka produzia esse efeito nela.
As duas deram alguns passos para longe dos outros alunos e Eri esperou por uma explicação.

- Estive falando com a professora e ela disse que a decisão era sua.

Uranus escolhera sabiamente o que dizer. Havia notado que Eri achava formidável dar a última palavra em qual fosse o trabalho.

Eri franziu o cenho e Haruka prosseguiu.

- Sabe, as músicas da peça poderiam ser tocadas ao vivo. Toco piano e achei que...

- Sério?! – a voz de Eri saiu esganiçada, atraindo a atenção dos jovens que ensaiavam.

A velocista passou a mão na nuca, sabendo que era tarde demais para desistir da ideia.

- Isso é maravilhoso, Tenoh-kun!

Eri juntou as mãos e seus olhos faiscavam, pensando no sucesso que a peça poderia ter. Michiru baixou o roteiro e olhou a amante, confusa pela presença dela.

- Gente! – acenou Eri aos colegas que ensaiavam. – Tenoh-kun sabe tocar piano!

Os alunos se entreolharam e Michiru ergueu uma sobrancelha. Achava que deveria manter segredo sobre tal habilidade.

- Se divulgássemos isso em um panfleto, podem imaginar como o teatro ficaria lotado? – disse Mitsune juntando-se a conversa e Eri concordou com a cabeça.

- Apesar de ser interessante... – falou Takeo aproximando-se – Por que não poupar trabalho e simplesmente tocarmos um cd de música clássica na hora?

Eri empertigou-se. Seus olhos brilharam de repente e Takeo deu um passo para trás.

- Porque isso seria o comum a fazer! Peças teatrais de colégio não se diferem muito das outras em questão de produção. Ninguém espera muito de nós, alunos. Não quero que essa peça seja só mais um projeto para o festival da escola. – respondeu Nakamura.

O intérprete de Malvólio, Hideki, coçou a cabeça antes de falar.

- Mas é exatamente o que essa peça é, Nakamura-chan. No final das contas, nós só queremos passar nessa matéria e ter umas férias de Narumi-sensei.

Takeo deu uma risada e olhou de Haruka para Eri. Enviesou o sorriso.

- Por que não vamos todos no intervalo à sala de música apreciar um concerto privado? – propôs o rapaz.

Haruka fechou a cara e Michiru colocou a mão na testa e revirou os olhos. A loira então pigarreou, retomando a atenção dos outros.

- Na verdade, eu poderia tocar nos ensaios alguns clássicos, ajudaria a entrar no clima e...

- Ou você poderia compor a música tema da peça, Tenoh-kun. Não deve ser difícil pra você, deve? – Takeo cortou-a. Desafiara a velocista sem cerimônias.

Percebendo a surpresa de Uranus, que logo viraria irritação, Neptune retrucou calmamente.
- Composições levam mais tempo do que imagina Takeo-kun. E tempo realmente é o que mais nos falta no momento.

- Pois eu acho uma ideia genial! – adiantou-se Eri com entusiasmo, os olhos voltando a brilhar. – Vai dar muita personalidade à nossa peça!

A expressão da recém nomeada diretora era de quem já contava com um aperto de mão do diretor do Mugen e inúmeras fotos no jornal do colégio. Os alunos viraram-se e fixaram o olhar na corredora, silenciosamente pressionando-a pela confirmação.

Da violinista, Uranus olhou para Takeo Ishikawa e, só pôde concordar com a cabeça. Para alegria quase assustadora de Eri Nakamura.

[...]

A aula de história não acalmou os ânimos do 1º ano A. Agitados, os adolescentes aproveitavam os momentos em que o professor escrevia no quadro para cochichar e trocar bilhetes. O assunto ainda era o mesmo do começo da manhã: A peça.
A própria Michiru havia cedido ao burburinho e questionado na ponta do caderno o que raios tinha sido aquela ideia de Haruka. A loira, ao ver a pergunta, apenas deu de ombros e desviou o olhar. A violinista suspirou.

Ao toque do intervalo, o professor deu um suspiro e largou o giz no canto do quadro, estava certo que se naquela aula os alunos ouviram dez palavras suas, era um milagre. Com dois livros debaixo do braço, o homem empurrou a porta deslizante para o lado e antes mesmo que pudesse sair, Eri Nakamura levantou e ficou à frente da turma.

- Pessoal! Silêncio! – a garota acenou mas os alunos continuaram a tagarelar.

O professor deu um último olhar cansado, balançou a cabeça e fechou a porta.

- Ei pessoal! – insistiu a menina – O que acham de irmos à sala agora de música ver Tenoh-kun tocar?

A conversa cessou e os jovens entreolharam-se. Yuna foi a primeira a concordar.

- Ótima ideia! Vamos logo antes que o intervalo termine. – falou Yuna enquanto limpava os óculos na barra da blusa.

- Haruka? – chamou Michiru, cutucando a loira que descansava cabisbaixa na carteira.

A velocista piscou sonolenta e fitou Nakamura, que mostrava olhos ansiosos pelo concerto. Sem perder tempo, Eri puxou a garota por um dos braços e manteve-se agarrada a ele, deixando de notar Neptune afundando a ponta da caneta no caderno. Uma mão só.

Tangendo os alunos como se eles fossem gado, a diretora da peça conseguiu reuni-los na sala de música, que ficava no bloco ao lado do prédio da sala de Artes.

Takeo Ishikawa cruzou os braços e espiou Haruka com olhos descrentes quando ela ajeitou-se no banco do piano de cauda. Esperava uma melodia simplória, daquelas aprendidas nas primeiras lições de música. Alguma que qualquer criança saberia cantarolar.

Michiru não disse nada. Nem no caminho nem na sala. Com o caderno debaixo do braço, manteve-se quieta esperando a loira começar a tocar. Pensou que não havia sentido em guardar aquele segredo e depois a parceira simplesmente despejar a informação em cima de Eri Nakamura.

“O que será que ela pretende com essa história de tocar piano na peça?

Haruka fitou as teclas, posicionou os dedos sobre elas e corrigiu a postura. Há anos não tocava para tanta gente. Vinte e duas pessoas, mais precisamente. As duas restantes preferiram o refeitório, suas barrigas reclamaram durante a aula de História.

A mão direta fez um leve movimento sobre as teclas e logo a esquerda acompanhou em um compasse ininterrupto. Os colegas trocavam olhares surpresos, que só aumentaram quando perceberam que sequer a loira espiou a partitura. Escolhera um solo que guardara com carinho, primeiro na mente e depois na segunda prateleira da sala em seu apartamento, sob forma de cd. “Prelúdio em sol menor Opus 23 era a música; Rachmaninoff, o compositor.

A violinista esboçara um sorriso, adorava aquela música.

Seus dedos passeavam em um caminho que sabia de cor. Poderia tocar quase todas as faixas do disco de olhos fechados. Quando terminou, Michiru, que exibia um largo sorriso foi a primeira a aplaudir, imitada dois segundos depois pelos outros alunos, ainda perplexos. Naquela sala, todos concluíram mentalmente que o talento de Haruka ultrapassava o mediano. Sua desenvoltura deixaria a Professora de música fascinada e até um tanto envergonhada...

Takeo tinha a boca entreaberta, que logo tratou de cerrar. Não esperava por aquilo. Olhou Michiru de soslaio e notou o grande sorriso. Torceu parte do roteiro. Como conseguir aquela mesma expressão dela?

As meninas pareciam mais encantadas que nunca pela corredora e Eri deu-lhe uma tapinha nas costas. Uranus soltou uma risadinha acanhada.

- Está decidido, Tenoh-kun! Você será meu pianis...digo, o pianista oficial dessa peça. Pode vir aos ensaios tocar! – disse Eri.

Ainda sentada no banco, Haruka fitou Michiru e esta ergueu a sobrancelha, que denunciava seu incômodo ao ouvir o comentário de Nakamura. Eri e os outros se puseram a conversar e esboçar cenas em que usariam o revelado talento de Uranus. Já Takeo, aproximou-se de Neptune e, afastando gentilmente uma das pontas do cabelo dela para trás, apoiou um dos braços no ombro da garota. Surpresa, a violinista ficou imóvel ao contato. Ia dar um passo para o lado quando o rapaz falou.

- Olha, até que foi interessante esse solo... – olhou a loira rapidamente –Embora eu prefira muito mais violinos. Seria realmente ótimo ouvir um concerto particular seu Kaioh-san.

Haruka apertou o punho. Ishikawa apenas sorriu com cinismo. Então Michiru lembrou da aposta e de como Haruka despudoradamente devorou com o olhar as pernas de Sara Matsuda. Lembrou também como fervera em constrangimento mais cedo, quando a corredora sugeriu que o rapaz pesquisasse o que ela gostava de ouvir antes de ir para a cama.

“Vale provocar, não é?” – pedaços do diálogo no apartamento vieram-lhe à mente. A violinista esboçou um sorriso cheio de malícia. Olhou para o relógio. 11h59. 12h00.

- Não costumo oferecer concertos particulares, Takeo-kun. É bem raro. – fitou Haruka antes de prosseguir – Mas fico feliz em saber que aprecia solos de violino. Se tiver interesse, aviso quando for me apresentar. Será meu convidado.

Os olhos do rapaz brilharam. Os de Uranus eram puro ciúme.

- Aceito com prazer. – respondeu Ishikawa por fim, exibindo um largo sorriso.

Pouco a pouco os alunos foram se dispersando. Alguns ainda estavam realmente empolgados com o solo de piano e levaram a conversa até o refeitório. Contudo, Takeo parecia não querer desgrudar de Michiru e Haruka o encarava, com uma das mãos no bolso. Queria esconder o punho ainda cerrado. Foi só quando a violinista se afastou um pouco que o rapaz fingiu uma tosse e deu uma risadinha.

- Kaioh-san, nós podemos conversar mais no refeitório sobre a peça, se quiser. – disse ele tranquilamente.

- Ah, que pena. – falou a loira se aproximando dos dois – Porque eu também preciso conversar com ela.

Michiru olhou de um para o outro. Era um tanto divertido ser espectadora.

- Mas é a Kaioh-san quem decide não é mesmo?

- Desculpe Takeo-kun, mas hoje fico por aqui... – falou a violinista gentilmente.

- Tudo bem... – o rapaz estalou a língua nos dentes e deu de ombros. – Mas antes de ir, quero dizer que achei bem interessante sua apresentação, Tenoh-kun.

- Obrigado. – os olhos da loira eram inexpressivos.

- Quer dizer, é piloto...pianista... O que mais sabe fazer além dessas coisas e de dar em cima de cinquenta garotas ao mesmo tempo?

Uranus não estava mais suportando a presença de Ishikawa. Ultimamente ele parecia se esforçar para encontrá-la e provocá-la. Foi o que conseguira no momento.

- Não sei...que tal ver se consigo tirar quatro dentes de uma vez em um soco? – a loira respondeu impaciente e o garoto ergueu as sobrancelhas.

- Ora, está mal-humorado hoje, hein?

Neptune apenas assistia ao pingue-pongue.

- Não, socos em idiotas sempre me deixam feliz.

- Ok, ok, estou indo...cuide bem da minha Viola, está bem?

- Claro, e você, arrume um Plano de Saúde... é sempre útil.

O rapaz saiu e a loira teve certeza que ele exibia um sorriso no canto da boca. Se antes ele a tratava com uma estranha cordialidade, agora nem se preocupava em maquiar suas palavras, que ultimamente estavam carregadas de provocação. Michiru lhe abrira espaço para uma conversa e até aceitara – de modo sutil – algumas de suas brincadeiras. Ishikawa estufara o peito de confiança e a velocista teria o maior prazer em estourá-lo.

- Parece que arranjou um amiguinho, Michiru. – falou a corredora com um meio sorriso.

- Você também... – respondeu a violinista, com a mesma expressão.

- Hã? Quem?

- Por favor, Haruka. Não deve nem saber o nome dela, já que as únicas coisas a prestar atenção foram as pernas.

Neptune cruzou os braços, aborrecida e Uranus passou a mão pela nuca, confusa. Então lembrou o breve episódio com Matsuda e sorriu. Os hematomas. No entanto, ao abrir a boca para explicar-se sentiu uma pontada no estômago. Foi como se retorcessem suas entranhas. Empalideceu e ficou arrepiada. A violinista pareceu perguntar algo, mas a corredora não ouviu.

- C-Conversamos depois... – murmurou Haruka antes de correr.

Michiru enfureceu-se. No meio de uma conversa sobre fidelidade viu a parceira acovardar-se e simplesmente correr. Deixada sozinha na Sala de Música, apertou o caderno com as duas mãos, furiosa. Pensou que talvez resolvesse aproveitar o resto do intervalo e conversar com seu novo parceiro, Takeo...

“Quem sabe assim você toma coragem para conversar, Tenoh...”

Longe da violinista, Haruka pôs uma das mãos na barriga. Dirigiu-se às pressas à enfermaria. A dor no estômago piorara.

“A omelete!” – lembrou-se a loira com pavor.

(continua)

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Capítulo 19 - Novos parceiros


Capítulo 19 – Novos parceiros.

A professora Narumi dividiu a pilha de roteiros entre Haruka, Michiru e Takeo sem muita cerimônia e adentrou na sala. Ficava no térreo, era espaçosa e bastante arejada. Os cavaletes, assim como os banquinhos, haviam sido encostados num canto e o ambiente estava sem empecilhos no meio. A mulher iria começar a distribuição dos roteiros, mas os alunos estavam completamente apinhados nas janelas, muitos nas pontas dos pés observando, cochichando e de vez em quando rindo. Narumi revirou os olhos e perguntou:

- O que está havendo aí?

- Sensei Izumida está com o rosto todo inchado! Cheio de esparadrapo no nariz! – respondeu um dos alunos. – Como ele consegue respirar com aqueles curativos?

- O que aconteceu com ele, afinal? – indagou outro.

Takeo aproximou-se da janela e deu uma espiadela antes de falar.

- E eu que pensei que não era possível ficar mais feio... Aposto que vai exigir dez vezes mais no beisebol pra descontar a raiva.

Michiru trocou um olhar culposo com Haruka, que disfarçou folheando as páginas do roteiro.

- Já chega. – disse Narumi com ar entediado. Parecia indiferente ao acidente com Izumida. – Temos uma peça para discutir.

Haruka, Takeo e Michiru apressaram-se em entregar os roteiros e logo os jovens afastaram-se da janela, voltando a atenção para a mulher, que sentara em um dos banquinhos.

- Pois bem, com o texto em mãos... Rumiko, eu juro que se olhar novamente pra essa janela, vou fazê-la limpar todos os pincéis da sala sem usar as mãos.

Entre barulhinhos da turma segurando risadas e Rumiko se encolhendo, a mulher continuou:

- Agrupem-se de acordo com o definido na lista de tarefas que dei. Os personagens da peça venham até aqui. E você também, Eri, já que vai dirigir.

Logo os alunos formaram pequenos círculos na sala e puseram-se a debater sobre o que e como fariam. Uranus acompanhou Neptune com o olhar enquanto ela formava o grupo com Takeo e os outros intérpretes. Balançou a cabeça rapidamente tentando focar no próprio roteiro e foi ao encontro de Sara Matsuda, sua dupla na criação da sonoplastia.

Cabelos presos em rabo-de-cavalo, estatura média e dois hematomas na perna; as duas irmãs mais novas deixavam brinquedos e roupas espalhadas pelo chão polido da casa. Tinha os lábios finos da mãe, gerente de uma fábrica de porcelanas. Sara abriu um sorriso quando seu par aproximou-se. Gostava da corredora, mas diferente da maioria das meninas da sala, não se deslumbrou quando a colega transferiu-se para o Mugen Gakuen. Na época, levou alguns minutos para perceber que Tenoh-kun era na verdade uma garota e se surpreendeu quando o resto das garotas não se deu conta desse fato. Contudo, resolvera não partilhar a informação; que a própria velocista decidisse o que revelar.

- Hey, Matsuda-san, como está? – disse Haruka retribuindo o sorriso.

- Felizmente com mais sorte que Izumida-san, coitado. E você?

- Contente em tê-la como dupla. – respondeu a loira empolgada.

Haruka puxou dois banquinhos e fez um gesto para que a menina se sentasse. Sara aceitou antes de responder.

- Digo o mesmo, Tenoh-kun.

- Haruka.

- Ok, me chama de Sara então.

- O que houve com sua perna? – a loira apontou os hematomas.

- É um problema que tenho desde que nasci...

A corredora franziu o cenho, preocupada.

- Que...tipo de problema é, Sara-chan?

- Se chama “Irmãs Chatas”. Elas sempre deixam as meias espalhadas pela casa. O problema é quando coincide de uma estar no chão polido e eu estar com pressa para não chegar atrasada no colégio.

As duas gargalharam e a loira achou que sua dupla foi uma lufada de ar em meio a dias problemáticos.

Do outro lado da sala, os intérpretes gesticulavam com entusiasmo, em uma pré-leitura do roteiro.

“Se eles impedirem tua entrada, responde que teus pés ali criarão raízes, até que te recebam.” – leu Ishikawa.

“Mas meu senhor, se o que dizem é verdade, vossa Olívia se entregou ao sofrimento e jamais terei acesso a ela” – respondeu Michiru.

Takeo espiou a próxima fala no roteiro, mas Narumi fez um gesto parando-o.

- Ishikawa, você como Duque, gosta e confia muito em Cesário...mas não precisa tocá-lo toda vez que há diálogo entre vocês. Lembre-se, Cesário será sua Viola ao final, mas antes disso são apenas nobre e súdito.

Michiru passou a mão pela nuca com impaciência. Era a quinta vez que o garoto acariciava-lhe o ombro ou ficava por trás dela. Se as coisas continuassem assim, não precisariam de Olívia na peça; Orsino iria assumir um amor gay antes de descobrir que Cesário era uma garota.

- Ler na sala está ficando difícil com as conversas paralelas dos outros. – disse a mulher para o grupinho. – É melhor que saiam daqui, vão lá para fora perto da quadra. Izumida saiu mais cedo hoje por causa do seu estado.

A violinista revirou os olhos e colocou o roteiro debaixo do braço, pronta para sair. Tentou um contato visual com a velocista, mas esta gargalhava depois de uma boa olhada nas pernas de Matsuda. Michiru estreitou os olhos. “Excelente. Parece que a única que vê algum sentido em monogamia sou eu. Realmente esplêndido, Haruka.”

Narumi bateu palmas pedindo atenção aos demais e comunicou que estaria dando assistência na pré-leitura da peça. Sara e Haruka viraram-se e o grupo já se dirigia para a saída. Takeo saiu aos cochichos com Michiru, que pareceu não se incomodar.
Lembrando de uma conversa mais cedo, Haruka amassou algumas folhas em um movimento inconsciente. A aposta. Uma infeliz ideia que tinha sido sua e somente sua. Imaginou que a outra já estaria empenhada em provocá-la até o ponto de bater no tatame como um lutador desistente.

Analisou o que seria mais estúpido: voltar atrás ou seguir com o acordo. Desejava, e muito, provar à Michiru que não era vítima de um ciúme infantil. Queria mostrar maturidade. Empinar o nariz e olhar por cima. Mas cada vez que pensava em Takeo Ishikawa, seu sangue entrava em ponto de ebulição. 

O garoto tinha virado a palha da pipoca que gruda entre os dentes. Agravando o problema por não ter fio-dental para removê-lo de sua vida...

- Sara-chan... – disse Haruka – a sensei vai ficar de olho, quer dizer, vai supervisionar os atores nas cenas, não é? – perguntou tentando disfarçar a preocupação.

- Ah, Narumi-sensei não vai ter tempo pra isso, acho que só vai aparecer de vez em quando, se tiverem alguma dúvida. Está ajudando a outra turma do primeiro ano no festival do colégio. Eles vão fazer miniaturas de batalhas japonesas. Ouvi dizer que vão fazer até uma maquete do castelo Himeji, não é legal?

- Acho bem melhor que essa peça. Ficamos com o mais difícil. – disse em tom emburrado.

- Vamos, Haruka-kun... Não é tão ruim. Pelo menos não temos que decorar milhões de falas ou costurar os figurinos.

- "Sara, gatinha, eu preferia limpar o palco com minha língua do que ver a língua de Ishikawa serpenteando na boca de Michiru." Pode ser, mas eu acho que isso ainda vai virar uma bagunça. – disse Haruka.

- Haruka-kun, eu garanto que Eri-chan não vai deixar.

A informação de que a mulher não acompanharia os ensaios não agradou em nada Uranus. Precisava inventar algo. Qualquer coisa que justificasse sua presença lá.

- No está pensando? – Sara agitou a mão perto do rosto da loira, que piscou confusa.

- Ah...desculpe. Eu só estava pensando... nas músicas que poderíamos usar. Sugere alguma?

Sara deu uma risadinha antes de responder.

- Eu adoro Heavy Metal, de música clássica eu não entendo.

- Tudo bem, eu tenho uns cd’s em casa, posso trazer.

- Você gosta de música clássica? – a garota arregalou os olhos e a corredora fez uma careta.

- Por que o espanto? Você também não tem cara de quem põe a língua pra fora e agita os cabelos como aquele cara do Kiss.

- Eu aposto que seu gosto foi bastante influenciado por Kaioh-san, não?

- Ei, eu já gostava antes, engraçadinha.

- Bom, então fica combinado assim: Você arruma os cd’s clássicos e eu posso arranjar os outros sons e efeitos. Meu primo trabalha em uma rádio.

- Ótimo. Escuta Sara-chan... Nós da sonoplastia temos que ir a todos os ensaios?

- Não, nem todos. Acho que o pessoal deve marcar locais pra passar o texto sem tanta barulheira.

- Merda... – murmurou.

- O que disse?

- Já volto.

[...]

Perto da quadra, Narumi posicionava os alunos simulando as marcações em um palco. Mitsune Yajima, a intérprete de lady Olívia, fora advertida pelo tom de voz baixo em sua encenação.

- Yajima-san, mal dá para ouvi-la. Tente fazer como os cantores e pratique a respiração diafragmática, vai te dar potência vocal e mais fôlego.

A jovem ajeitou a postura, respirou e inspirou profundamente, então continuou:

“E qual idade e aparência dele?”

- Muito bem, Yajima. Sua vez, Hideki. Lembre-se que Malvólio é amargo e ranzinza, responda desdenhosamente.

O rapaz assentiu.

“Como uma vagem logo antes de ser ervilha, ou como uma maçã que se cozinha, ainda antes de estar pronta para comer. Assim é ele: nem tão homem nem tão menino. Tem muita boa aparência e fala de modo quase agudo. Pode-se dizer que nem bem saiu das fraldas.”

Michiru sorriu discretamente com a descrição de Cesário, mal podia acreditar que em breve vestiria roupas masculinas e colocaria um bigode ralo postiço; tudo para dar vida ao personagem. Voltou sua atenção à cena e fitou os companheiros de peça. Aparentavam real empenho em suas funções.
Um em particular despertou sua curiosidade. Takeo estava sério, de braços cruzados e olhar fixo no chão. Assemelhava-se a um jogador de xadrez, pensando dez jogadas à frente enquanto posicionava o peão no tabuleiro. Ela não sabia exatamente o porquê, mas aquilo a incomodou. Consideravelmente.

- Sua vez, Kaioh-san. – cochichou um dos alunos.

- A-ah, arigatou. “A honrada e venerável senhora dona desta casa, quem é ela?”

Mitsune postou-se na frente da violinista com ar decidido e leu sua fala, dessa vez em tom mais alto.

Narumi fez um sinal positivo para a jovem, que continuou. As duas garotas contracenavam e eram rodeadas pela mulher, que as observava sob olhar crítico, interrompendo sempre que preciso ou dando dicas à Eri Nakamura, a aluna encarregada da direção.

Com uma das mãos no queixo, Eri ouvia tudo atentamente. Perfeccionista, não tinha pudores ao passar sermão nos colegas quando julgava necessário. O que fazia oitenta por cento das vezes. Com uma prancheta e caneta em mãos, a garota já pontuava os deslizes. Iria mostrar à professora, mas essa, já estava conversando com outro aluno.

Narumi sentiu um toque no ombro e se virou. Era Haruka.

- Sensei...

- Sim?

- O que acha da trilha sonora ser ao vivo?

- Ao vivo?

- Estarei presente nos ensaios.

- Claro, você e Matsuda-san na sonoplastia.

- Pensei em algo diferente.

- Do que está falando, Tenoh?

- Estou falando que tem um pianista bem na sua frente.


(continua)

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Capítulo 18 - A aposta

Capítulo 18 - A aposta.

Uma e meia da manhã. A loira encarava o teto, deitada na cama de casal com as mãos por trás da nuca. A companhia de certa garota teve efeito semelhante a um bom chá. Relaxante.

Sua breve jornada no cemitério deixara-lhe interessantemente renovada. Chorar ajudou. Chegara em casa e antes de abrir a porta, passou os dedos nos olhos para ter certeza que as lágrimas não iam reaparecer. Encontrara a violinista debruçada na varanda do apartamento, parecia tão imersa nos próprios pensamentos que só notou a presença da outra quando ela já estava ao seu lado. Abraçou-a. Foi retribuída.
A corredora apontou uma sacola que carregava e disse algo sobre alguma comida. A Sailor dos Mares olhou brevemente e sorriu. Puxou a garota com o pacote até o quarto e a fez se deitar. Uranus entregou-lhe hashis e comeram uns sushis ali mesmo na cama. Passaram horas conversando e trocando uns beijos. Ao olhar o relógio na mesa de cabeceira, espantaram-se. Haruka tratou de jogar os pacotes no lixo e a violinista tomou um banho rápido. Reencontraram-se na cama e deitaram em silêncio, ultimamente as noites custavam a passar.

Mais tranquila, a velocista fechou os olhos deixando que o frio do ar condicionado afagasse seu rosto. Em seguida, desligou o abajur para que só a luz natural adentrasse o quarto. Seu edredom azul claro logo a esquentou, assim com o corpo que se acomodara ao seu lado. Neptune trajava uma camisola de seda, cor de pêssego; um pequeno luxo encontrado numa das malas. Sem pressa, colocava uma das pernas por cima das de Uranus, encaixando-se de modo que parecesse um só corpo quase. Passando um dos braços em volta da violinista, a corredora logo interrompeu o silêncio.

- Você é uma provocadora, sabia?

- Isso seria uma reclamação?

- Jamais...

- Está melhor?

- Vou ficar, obrigado.

- Que bom. – riu Neptune aninhando-se no corpo da outra.

- Como... como me aguenta, Michiru?

- Três palavras...

- Boa de cam...? – a loira riu, antes de completar.

- Eu não ia dizer isso, mas ajuda também... – a Sailor sorria, ao notar que o humor da amante parecia estar voltando – Ah... e como sabe se é boa de... você sabe...

- Ué, pela reação do outro. Aliás, pela sua reação, princesa...

- Hum... e se eu estiver fingindo? – provocou, imaginando que tipo de reação teria a loira com a pergunta.

- Quer que eu enumere as evidências de que não está? – Haruka sorria, vendo Michiru corar.

- Não precisa.

- Número um...

- Haruka! – puxava uma das bochechas da corredora, em repreensão.

- Que foi? Ai!

- É engraçado que esse assunto traga teu humor de volta. – ria.

- Não só o meu... dizem que ele move o mundo, né?

- “Ele”?

- Você sabe...

- Entendi...

- Não acha importante?

- Bom, sim... mas...

- Se não acha tão importante, consegue ficar sem por um tempo?

Uranus sorria, vendo a parceira arquear uma sobrancelha.

- Como assim?

- Eu aposto que em cinco dias... Não, em dois dias você vai sentir falta, muita falta... e vai me atacar.

- Olha só quem fala... – Michiru revirou os olhos.

- Ei! Eu consigo me controlar!

- Sério? – Neptune perguntava entre risos, não acreditava na loira. – Vale provocar, não é?

- Claro.

- E o que acontece quando eu ganhar, digo, com o ganhador?

- Digamos que o perdedor fará tudo que o ganhador quiser... por um dia.

- Apostado. Sabe, parece que teve bastante tempo pra pensar nisso, ‘Ruka... – a violinista traçava círculos com os dedos no abdômen da Sailor, que se arrepiava ao toque.

- Minha mente viaja bastante enquanto dirijo...

- Ah, é? E com que freqüência eu apareço nas suas... viagens?

- Noventa e nove por cento das vezes... – a loira respondia, beijando a Sailor em seguida.

- E o 1%?

- Uso pra me lembrar de trocar de marcha.

Michiru soltou uma gargalhada antes de falar.

- Apareço sem roupa, imagino.

- Completamente. – sorriu a outra com cinismo.

- A aposta não começou né?

- A partir do meio-dia...

- Então agora, tecnicamente não vou perder...

- Provocadora.

[...]

Neptune esforçara-se acordando antes da velocista. A primeira das duas tarefas que se deu. 
A segunda esperava-a na cozinha onde improvisou um desjejum. Não iria ganhar prêmio algum de culinária, mas a loira não morreria de fome. Todavia ao olhar a omelete escurecida, não descartou uma indigestão.

- Bom dia ‘Ruka. – cumprimentou Michiru com um sorriso, vendo Uranus esfregar os olhos ainda sonolenta.

- Bom dia... Hey, mas que cheiro é esse?

- Peixe, arroz, chá e uma omelete queimada... – a garota apontava com certo constrangimento. Haruka apenas sorriu, aproximando-se.

- Parece ótimo. Obrigado, mas não precisava ter se incomodado. Quer dizer, dormiu pouquíssimo, levantou antes de mim e ainda preparou essa refeição?

- Essa conversa toda não é por medo de provar minha comida, é?

- Ora, só estou agradecendo! – ria.

- Agradeça à Morino-san, ele escreveu o básico pra mim também...

- Não... – se aproximava da Sailor, abraçando-a por trás – Eu agradeço a você... seria estranho beijar a nuca de Morino-san.

Michiru ria, permitindo que a carícia continuasse antes de perceber que as mãos de Uranus aventuravam-se por dentro da blusa do uniforme.

- Haruka...a...a-aposta...

- Tá longe do meio-dia...

- E o...desjejum?

- Tá longe da minha boca... você está mais perto. E eu prefiro você...mil vezes.

- Por mais que eu goste da ideia de substituir o colégio por atividades mais... prazerosas, não posso faltar outro dia. Imagino o que falaram de mim. Aliás, você esteve no dia em que faltei, disseram algo?

E era exatamente o tipo de pergunta que a corredora queria evitar. Talvez um sorriso disfarçasse. Talvez às sete e quinze da manhã Neptune não estivesse tão observadora.

- Eu estava ocupada demais pensando em você pra notar...

- Mentirosa... – ria.

Uranus pensou que talvez devesse se empenhar mais nos sorrisos.

- É verdade!

- Tá, tá... vamos comer antes que esfrie.

[...]

Uma caminhada sem pressa levava as Sailors em direção ao colégio Mugen. A uma distância mediana, já conseguiam ver os portões do lugar. Altos, imponentes e adornados com a logomarca da escola: uma grande estrela negra marcada ao centro pelo símbolo matemático referente ao infinito. O material das grades revelava o que uma considerável mensalidade faz.

- Realmente não precisava ter comido a omelete, ‘Ruka. Estava horrível. – disse a Sailor dos Mares com ar preocupado.

- Besteira, foi só um pouco afinal. Acho que fiquei empolgada porque há um bom tempo não como comida caseira...

- Verdade? O que costumava comer de manhã?

- Vejamos... sanduíches naturais comprados ou muitas vezes nada, não tenho muita fome de manhã. Yoshiro pegava muito no meu pé por causa disso.

- Hanako me obrigava a comer também. – riu a outra.

- Quem é Hanako?

- Ora, você a conheceu, é aquela garota que levou os biscoitos no meu quarto. Enquanto eu, você e Elza estudávamos.

- Oh, a gracinha de cabelos curtos... – a loira olhava para cima, tentando se lembrar de mais detalhes.

- Sabe Haruka, eu posso queimar omeletes todos os dias se quiser... – o tom não era dos mais alegres.

- A-Ah, não... obrigado...

Atravessando finalmente os portões, Michiru notou olhares receosos em sua direção. Eram das mesmas pessoas que todas as manhãs cumprimentavam-na, oferecendo sorrisos duvidosos.

- Haruka, é impressão minha ou certas pessoas estão me evitando? Quer dizer, não que eu reclame, sei que algumas não me cumprimentavam sinceramente...

- Bom...

- Nossa, então o puxão de orelha que Tenoh-kun deu realmente funcionou, não?

Takeo apressava-se dando dois passos ficando agora lado a lado com Neptune. Por reflexo, Uranus passou o braço pelos ombros da Sailor. O rapaz ria...

- Que...puxão de orelha, Haruka?

- Bom dia pra você também, Ishikawa... – a loira olhava-o de soslaio. Parte de seu humor começava a se esvair. – Não é nada demais, Michiru...

- Olheiras, Tenoh-kun? Não tem dormido bem? – perguntava Takeo observando rapidamente o rosto da corredora. É incrível o que o tom de uma frase podia revelar... A pergunta não continha preocupação.

- Por quê? Você quer cantar canções de ninar pra mim à noite? – disse Haruka com um sorriso e a violinista segurou uma risada.

Normalmente a corredora trincaria os dentes e faria alguma ameaça, mas, uma madrugada bastante proveitosa com Michiru não tiraria seu humor tão rápido. Assim esperava.

- Nada especial. – respondeu o rapaz um tanto sério, para em seguida emendar um sorriso carregado de provocação. – E eu prefiro fazer isso pra sua amiga. Você não pode me culpar...

A loira sentiu a testa esquentar rapidamente, como se o sangue tivesse cronometrado o tempo de entrar em ação. Levou a mão aos cabelos e passou com arrogância pelas mechas, num ato que Michiru reconheceu bem. Narciso dera as caras novamente. A loira sempre o convocava para lidar com tipos como o de Takeo.

- Culpar? – perguntou Haruka, num esforço para manter o sorriso. – Claro que não. Mas eu suponho que pra agradá-la, você deva pesquisar mais sobre o que ela gosta de ouvir antes de ir para a cama.

Alguns alunos que ainda conversavam perto do portão viraram as cabeças. Talvez tivessem escutado o final da frase. O fato, é que de Haruka, encararam Michiru, a essa altura fervendo de constrangimento. Neptune não se viu, mas imaginou que sua face estava mais vermelha que o círculo central da bandeira japonesa. Por um momento, pareceu que seus olhos pulariam das órbitas num movimento suicida e seu coração dançara Foxtrot com os pulmões.

Lividez definia a face do rapaz e a corredora parecia satisfeitíssima por presenciar.

- Musicalmente falando, é claro. – completou Haruka antes de soltar uma risadinha e Michiru pensar em jogá-la da Torre de Tóquio.

- Claro... – respondeu Takeo forçando definitivamente um sorriso simpático. – Mas me diga Michiru, o que gosta de ouvir antes de ir para a cama?

Às vezes respirar profundamente é tudo que precisamos para nos acalmar.

Às vezes.

Todavia, antes que a loira esboçasse qualquer resposta malcriada, se deparou com a professora Narumi segurando uma pilha de papéis.

- Ah, que bom ver vocês. – falou a mulher agarrando os encadernados com uma mão enquanto a outra era ocupada com sua bolsa preta. – Estes são os roteiros da peça, vamos logo para a sala?

Os três entreolharam-se e chegaram a um acordo silencioso de que a discussão terminara ali. Zero a zero mas com um possível segundo tempo.

- “Musicalmente falando?” – cochichou Neptune em tom descrente para Uranus a caminho da sala.

- Que outro sentido poderia haver? – retrucou em tom despreocupado.

- O seu descaramento tem limite?

Haruka deu uma risadinha.

- Que bom que acha meu constrangimento engraçado, Haruka. Parece que vencer a aposta vai ser ainda mais simples do que pensava.

- Você é tão dura comigo, Michiru-chan...

(continua...)